As propostas para a saúde feitas pelo governo federal são piores do que os depredadores soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas. (grifos meus)
Como cidadão, fiquei deslumbrado com o clamor que varre a nação. Como médico, e ligado à saúde, mergulhei em esperanças. Contudo com a mesma velocidade que esse sentimento aflorou, fui tomado por uma angústia incontida ao observar as manifestações oficiais. Anunciou-se solenemente que seriam importados milhares de médicos estrangeiros e injetados R$ 7 bilhões em hospitais e unidades de saúde. Também se propôs a troca de R$ 4,8 bilhões de dividas dos hospitais filantrópicos por atendimentos médico e foi anunciada a criação de 11.400 vagas de graduação em escolas médicas. Perplexo, gostaria de dizer que essas propostas são tão surrealistas que não podem ter sido idealizadas por autoridades sérias, mas sim por marqueteiros afeitos à empulhação. Piores do que os predadores soltos pelas ruas, já que destroem vidas humanas.
A medicina exercida condignamente pressupõe equipes qualificadas, não apenas com médicos, mas também com enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Exige instalações minimamente equipadas, para permitir diagnósticos a tratamentos mais simples. Necessita de apoio de farmácias, capazes de prover sem ônus para os necessitados, as medicações essenciais. Requer processos de higiene, assepsia e certo conforto, para dar segurança e respeitar a dignidade humana dos pacientes. O que farão os médicos estrangeiros nas áreas remotas do Brasil apenas com termômetros e estetoscópios nas mãos? Irão receitar analgésicos, antidiarreicos e remédios para tosse, o que poderia ser mais bem executado por qualquer prático de farmácia, também afeito às doenças regionais. Médicos que nos casos mais delicados nem atestado de óbito poderão assinar, pois não conseguirão identificar a causa da infelicidade. Pior ainda, como esses médicos conseguiram atuar limitados pela dificuldade de comunicação, desqualificados para tratar doenças já erradicadas em países sérios, frustrados por viverem em regiões destituídas de condições mais dignas de existência para eles próprios, suas mulheres e seus filhos.
Certamente tratarão de migar para centros mais prósperos, abandonando aqueles que nunca conseguirão expressar a desilusão. Não custa lembrar que muitos países desenvolvidos aceitam médicos estrangeiros, contudo nenhum deles atua sem ser aprovado em exames extremamente rigorosos, que atestam a elevada competência profissional. Igualmente falaciosa é a proposta de incrementar os recursos para a saúde. Num país como o Brasil, que gasta apenas 8,7% do seu Orçamento com a saúde - muito menos que a Argentina (20,4%) e a Colômbia (18,2%) - somente mal intencionados poderão acreditar que um aporte de recursos de 0,7% corrigirá a indecência nacional. Também enganadora é a ideia de se recorrer às instituições filantrópicas. Em situação falimentar, deixam de pagar tributos porque não recebem do governo federal os valores justos pelo trabalho. Pelo mesmo motivo, serão incapazes de aumentar o já precário atendimento.
Quanto à criação de novas vagas para alunos de medicina, nada mais irrealista. Para acomodar os números apresentados, o governo teria que criar entre 120 e 150 escolas médicas. Com que recursos? Com que professores? Com que hospitais? Presidente, termino pedindo desculpas pela minha insolência. Você, que é digna e tem história, não pode tergiversar perante o clamor de tantos filhos da nação. Faça ouvidos moucos ao embuste e combata de forma sincera os malfeitos. Assuma, de forma sincera e não dissimulada, a determinação política de priorizar os recursos para as áreas sociais. Para não ser tomada de angústia infinita ao cruzar com a multidão entoando com indignação o canto de Chico Buarque: " Você que inventou a tristeza/ Ora, tenha a fineza/ de desinventar/ Você vai pagar e é em dobro/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar " (Apesar de Você).
*Texto de Doutor Miguel Srougi, 66, Formado pela Universidade de São Paulo, em 1970; Universidade de Harvard, Boston, USA, 1976 e 1977 – Research Fellow in Urology; Autor de 120 publicações científicas originais; Ganhador de 12 prêmios em Medicina; Urologista do Hospital Sírio Libanês e Beneficência Portuguesa; professor titular de urologia da Faculdade de Medicina da USP presidente do Conselho do Instituto Criança é Vida.
Fonte: Jornal Folha de São Paulo, 30 de junho do ano 2013. Pág. A 3
Digitado por Iracema Alves/ jornalista cadeirante, em 08/07/2013.
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