2ª Parte da matéria " O Modelo de Reprodução Agrícola Em Discussão"
Entrevista especial com Karen Friedrich, "O modelo de produção agrícola baseado na 'tecnologia' química e de transgênicos tem que ser revisto", afirma toxicóloga. Com a resistência gradual das pragas e plantas daninhas aos agrotóxicos tradicionais, a indústria dos transgênicos precisou buscar alternativas mais eficientes para a manutenção de seus resultados. Uma das apostas do mercado é liberar a comercialização de sementes resistentes ao herbicida 2,4-D. A substância já tem o seu uso regulado no País, mas, ainda assim, dúvidas quanto à sua segurança toxicológica levaram uma série de especialistas a apontar a exigência da revisão de sua licença. Neste contexto, a toxicóloga Karen Friedrichalerta: " a liberação da semente legitimaria uma forma de aumentar a aplicação de uma substância tóxica, cujo uso deveria ser diminuído, não incentivado.
IHU On-Line – O uso da semente com 2,4-D teria sido testado apenas em dois municípios brasileiros, Indianápolis (MG) e Mogi Mirim (SP). É suficiente para uma avaliação adequada dos riscos envolvidos? Qual seria um procedimento adequado?
Karen Friedrich - O ideal é que você tenha essa testagem nos solos e nas diferentes características ambientais do país. Se o poder econômico e político tiver mais força e ela vier a ser liberada, isso vai ser um grande problema. E, além disso, se ela vier a ser liberada, é evidente que será usada no país inteiro. Então dois Estados ainda são muito limitados para a gente dizer a eficácia dessa semente. E o que a gente tem visto também com outras
sementes transgênicas é que, ao longo do tempo, assim que ela é lançada, em geral só tem um pico de produção, mas depois essa produção vai diminuindo. Porque os próprios insetos se tornam resistentes a ela, você tem que usar cada vez mais agrotóxicos e esses agrotóxicos diminuem os predadores naturais e os predadores naturais daquelas pragas, então você tem que usar cada vez mais agrotóxicos. Isso na verdade é um ciclo que cada vez mais incentiva a produção da toxina.
Outra coisa que temos que observar é que quem está trazendo essa informação para o agricultor é a indústria. Então esse agricultor às vezes acredita que o transgênico e o agrotóxico são a melhor solução para ele, mas ele está ouvindo uma indústria que tem conflito de interesse no tema. Ela quer promover o seu produto. Muitos questionam essa briga da agricultura com a saúde, mas temos que fazer essa discussão com base científica. Tirar essa discussão ideológica da produção e do desenvolvimento e ver o que é bom para o meio ambiente, para a saúde, e que ao mesmo tempo sustente economicamente o país.
IHU On-Line – A introdução de sementes resistentes ao 2,4-D está sendo proposta devido à resistência das pragas ao herbicida Glifosato. Esta não seria uma medida paliativa que levará novamente à criação de superpragas? Qual seria uma solução possível?
Karen Friedrich - A semente transgênica do 2,4-D não substitui, ele é usado para outro tipo de folha. Na verdade os agricultores vão usar o glifosato, o 2,4-D e as suas respectivas sementes transgênicas, o que é muito pior. Você está associando dois agrotóxicos com efeito sobre a saúde e, quando estão em conjunto, o seu efeito pode ser muito maior. Na verdade eu penso que é uma discussão mais ampla que tem a ver com o modelo de produção. Nós temos propriedades que produzem milhares de hectares com uma única cultura aplicando um monte de substâncias químicas, então você não tem um ambiente equilibrado que pudesse ter predadores naturais para aquelas pragas. Não estou dizendo que as monoculturas devem acabar, não é isso, mas existem sistemas que podem ser intercalados, como a produção de florestas para produzir um sistema minimamente equilibrado, que possa ter predadores naturais para aquelas pragas, fazendo o uso de agrotóxicos ser, com o tempo, diminuído.
IHU On-Line – Sabemos que nem todo produtor rural tem o perfil para a produção orgânica, que exige uma dedicação muito maior do que a da produção convencional. A aplicação de agrotóxicos na lavoura é fundamental para a produção de alimentos?
Karen Friedrich - Não, não é. Existem vários estudos, locais e produtores mostrando que é possível produzir alimento sem agrotóxico. É preciso diferenciar o que é alimento e o que é commodity. Soja, algodão, cana e milho, da maneira como estamos produzindo, não são alimentos, são commodities. São alimentos pontuais que em geral servem para a produção de ração de animais, mas não vivemos apenas dessa fonte proteica, a nossa alimentação tem que ser equilibrada com outros alimentos, com outros nutrientes. As grandes monoculturas produzem para exportar, não para gerar alimento para a sociedade. A despeito dessa grande produção agrícola, estamos onerando a saúde humana, a saúde do trabalhador, a saúde do meio ambiente, e é essa a grande questão.
O que temos visto também é que o
uso de agrotóxicos causa uma toxidade nos próprios animais de criação e de corte, como algumas aves, o porco e o boi. Essa toxidade leva à diminuição da reprodução desses animais, o que leva o produtor a inocular hormônios nos seus animais para garantir a produção deles. Mas ele não pensa que a consequência disso pode ser do próprio agrotóxico que foi utilizado no pasto, ou numa propriedade vizinha, ou passou por avião, ou que está contaminando o lençol freático de uma região um pouco mais distante, mas que é consumido pelo gado. Na verdade, o agrotóxico está levando a uma insustentabilidade da produção local e é isso que não está sendo colocado.
Nós não devemos escutar a indústria de agrotóxicos, pois ela quer vender o seu produto. Algumas instituições de pesquisas sérias têm produzido estudos de modo a dar sustentabilidade para a produção orgânica, mas o próprio governo também precisa agir. Nós vemos números estratosféricos de investimento na grande monocultura. Caso parte desses recursos fossem voltados para a produção orgânica e agroecológica, com certeza a produtividade desses setores iria se inverter. É como você falou, é difícil, não é de hoje para amanhã que a pessoa vai produzir de maneira agroecológica, e é preciso também um investimento financeiro, porque de pronto muitos produtores orgânicos estão ameaçados pela contaminação que vem de uma grande propriedade vizinha em que passa o avião, e vem pelo vento, pelo ar, pela água. O governo e a sociedade têm que começar a questionar, a dar apoio e exigir esse investimento maior nesse tipo de produção. A situação já foi pior, hoje temos certo investimento, mas ainda está muito aquém do que é investido nas grandes monoculturas.
IHU On-Line – Como você encara a relação entre a produção de organismos geneticamente modificados e os agrotóxicos?
Karen Friedrich - Não é uma coincidência que as grandes empresas produtoras das
sementes transgênicas são as principais produtoras daquele agrotóxico ao qual a semente é resistente. A indústria vende dois produtos como sendo a solução dos problemas do agricultor, sendo que ele tem interesse na sua comercialização. É algo a se perguntar e nos leva a questionar todo o modelo de produção e pensar em alternativas para esse modelo. É claro que isso não vai interessar à indústria, mas temos que pensar também em quem o governo quer proteger. É uma questão até de soberania nacional.
Por outro lado, do ponto de vista da saúde, alguns estudos já demonstram que o uso combinado do agrotóxico com a semente pode aumentar a toxidade do produto. Isso por si só já demandaria mais investimento em estudo e pesquisa, de pesquisadores independentes da indústria, sem conflito de interesses. É importante que mais estudos fortaleçam essas hipóteses, mas na nossa Lei Ambiental temos o chamado princípio da precaução: uma vez existindo incerteza sobre a segurança de um produto, ele deve ser suspenso até que se comprove a sua segurança. Logo, mesmo que poucos estudos mostrem esse efeito combinado, por si só isso já deveria levar à suspenção do registro de agrotóxico.
Uso conjunto de agrotóxicos
Outra coisa que temos que pensar é que em determinada cultura são usados vários
agrotóxicos. Para algodão, soja, são centenas de agrotóxicos permitidos para essas culturas. Claro que não se espera que o agricultor use todos os que são permitidos, mas se ele usar algumas dezenas, uma dezena, quatro, cinco variedades, o uso combinado pode prejudicar a saúde muito mais do que foi no laboratório.
Esta é uma deficiência da legislação não só no Brasil como em alguns outros países. Quando a indústria pleiteia o registro de um produto, ela apresenta vários estudos dos efeitos tóxicos daquela substância, só que conduzidos apenas tendo em vista a substância que está sendo pleiteada. Não se administra, no animal de laboratório, aquela substância mais outra que já está registrada para aquela cultura. Dito isso, nós não temos ideia do que resultaria do uso combinado dos agrotóxicos.
Do ponto de vista toxicológico do que se tem de alguns estudos científicos, já é demonstrado que algumas combinações são extremamente tóxicas. Um exemplo clássico é o dos organofosforados, uma classe química de agrotóxicos que causam a inibição de uma enzima chamada acetilcolinesterase. Então esse tipo de agrotóxico usado unicamente inibe uma quantidade X que poderia manter o indivíduo nas suas condições normais. Só que se ele usa dois, três, quatro organofosforados, esses efeitos vão ser somados. A inibição que era X passa a ser 3X, 4X, e acaba ultrapassando aquele limite em que se consideraria o efeito tolerável, chegando num ponto incompatível com a qualidade de vida da pessoa. Existem outros exemplos de agrotóxicos que podem causar alterações hormonais em quantidade muito maior do que a substância isolada.
É como no caso dos medicamentos; sabemos que há medicamentos que podemos usar em conjunto, e outros que são incompatíveis porque alteram o efeito esperado. Ou diminuem a própria eficácia ou aumentam e muito a sua toxidade. Do ponto de vista toxicológico, nós vemos que os efeitos do agrotóxico são realmente muito agressivos, e gradativamente devemos substituir esse modelo de produção baseado nessa “tecnologia” química e de transgênicos por modelos alternativos de base agroecológica.
Por Andriolli Costa
Iracema Alves/ jornalista cadeirante
Participação: Wiglinews