Por Raquel de Queiroz
O Amigo da Onça - Péricles |
Não sei se vocês têm meditado como deve o funcionamento do complexo maquinismo político que chama governo democrático, ou governo do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato. No entanto, talvez não exista mais do que esta expressão, nenhuma nas línguas vivas,: que deva ser tomada no seu sentido mais literal: governo do povo. Porque numa democracia, o ato de votar representa o ato de Fazer o Governo. Pelo voto se serve a um amigo, não se combate um inimigo, não presta ato de obediência a um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe de maneira definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão governar por determinado prazo de tempo. Escolhem pelo voto aqueles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas - e quão profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei pode nos dar e nos tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos ilumina, até os sete palmos de terra da derradeira moradia.
Escolhemos igualmente pelo voto aqueles que nos vão cobrar impostos, e, pior ainda, aqueles que irão estipular a quantidade desses impostos. Vejam como é grave a escolha desses "cobradores". Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria, nos chupar a última gota de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do bolso. E, por falar em dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aqueles que vão receber, guardar e gerir a "fazenda pública", mas também escolhem aqueles que vão "fabricar" o dinheiro. está é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos seus escolhidos. Pois se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários. Eles desandam a emitir sua conta sem limite; o dinheiro se multiplica tanto que vira papel sujo. O que ontem valia mil, hoje não vale mais zero (grifos meus). Não preciso explicar muito este capítulo, já que nós inda nadamos em plena inflação e sabemos à custa de nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder. Escolhem-se nas eleições aqueles que têm direito de demitir e nomear funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático.
E, circunstância mais grave e digna de todo o povo que exercem o poder executivo, o comando de todas as forças armadas: o exército, a marinha, a aviação, as polícias. É assim amigos: "quando vocês forem levianamente levar seu voto para Sr. Fulaninho que lhe fez um favor, ou para o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governante, coitadinho, ou para Beltrano que é tão amável , parou o automóvel, lhe deu uma carona e depois solicitou o seu sufrágio - lembrem-se de que não vão proporcionar a esses sujeitos um simples emprego bem remunerado. Vão lhes entregar um poder enorme e temeroso.Vão fazê-los reis, vão lhes dar soldados para eles comandarem - e soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos chefes que lhes dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós próprios fossem. Entregamos a esses homens tanques, metralhadoras, canhões, granadas, aviões, submarinos, navios de guerra e a flor da nossa mocidade por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode virar contra nós e nos destruir como o monstro Frankenstein se virou contra seu amo e criador.
Votem, irmãos, votem mas pensem bem antes. Votar não é assunto indiferente, é questão pessoal, e quanto!!! Escolham com calma, pense e meçam os candidatos com muito mais paciência e desconfiança, como se estivessem escolhendo uma noiva. Por que afinal mulher é ruim, briga-se com ela, devolve-se ao pai, pede-se o desquite. E governo, quando ruim, ele é quem briga conosco, ele é o que nos põe na rua.
Agora um conselho final, o que pode parecer um mau conselho, mas no fundo é muito honesto. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar em alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar este ou aquele candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa arrancada à sua pobreza, às sua dependência ou á sua timidez. Lembre-se de que o voto é secreto. Se o obrigarem a prometer, prometa. se tem medo de dizer não, diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se do outro lado de fora da seção eleitoral você depende e tem medo, não esqueça: dentro da cabine indevassável você é um homem livre (grifos meus). Falte com a palavra dada à força e escute apenas sua consciência. "Palavras o vento leva, mas a consciência não muda nunca, acompanha a gente até ao inferno".
Fonte: Revista O Cruzeiro, 11 de janeiro de 1947*
Nossa homenagem a saudosa Raquel Queiroz
Iracema Alves - jornalista cadeirante
Diagramação: Wiglinews
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