terça-feira, 18 de outubro de 2016

DOCUMENTÁRIO: UMA HITÓRIA DE SEVERINA E GRETCHEN FILME

 
 
 
 
 
Na semana passada, sugeri  a uma pessoa próxima que trocasse a palavra "idosa" por "velhas" em um texto. Fui informada que era impossível, porque as pessoas sobre as quais ela escreve se recusavam a ser chamadas de "velhas": só aceitavam "idosas". Pensei: "roubaram a velhice".  As palavras escolhidas - e mais ainda as que escapam - dizem muito, como Freud já nos alertou há mais de um século. Se testemunhamos uma epidemia de cirurgias plástica na tentativa da juventude para sempre (até a morte), é óbvio esperar qua a língua seja atingida pela mesma ânsia.  Acho que o "idoso" é uma palavra "fotoshopada" - ou talvez um lifting completo na palavra do "velho". E saio  aqui em defesa do "velho" - palavra e o ser/estar de um tempo que, se tivermos sorte, chegará para todos.
 
Desde que a juventude virou não mais uma fase da vida inteira, temos convivido com essas tentativas de tungar a velhice também no idioma. Vale tudo. Asilo virou casa de repouso, como se isso mudasse o significado do que é estar apartado do mundo. Velhice virou terceira idade e, a pior de todas, "melhor idade". Tenho anunciado a amigos e familiares que, se alguém me disser, em um futuro não tão distante, que estou na "melhor idade", vou romper meu pacto pessoal de não violência. O mesmo vale para o primeiro que ousar falar comigo no diminutivo, como se eu tivesse voltado a ser criança. Insuportável. A velhice é o que é. É o que é para cada um, mas é o que é para todos, também Ser velho e estar perto da morte. E essa é para cada um, mas é o que é para todos, também.  
 
Estar velho é estar perto da morte. E essa é uma experiência dura, duríssima até, mas também profunda. Negá-la é não só inútil  como uma escolha que nos rouba alguma coisa de vital. Semanas atrás, em um programa de TV, o entrevistador me perguntou sobre a morte. E eu disse que queria viver a minha morte. Ele talvez não tenha entendido, porque afirmou: "Eu quero viver a minha morte". Na adolescência , eu acalentava a sincera esperança de que algum vampiro achasse o meu pescoço interessante o suficiente para me garantir a imortalidade. Mas acabei aceitando que vampiros não existem, embora circulem muitos chupadores de sangue por aí. Isso só para dizer que é claro que, se pudesse escolher, eu não morreria.
Mas essa é uma obviedade que não nos leva a lugar algum.
 
Que ninguém quer morrer, todo mundo sabe. Mas negar o inevitável serve apenas para engordar o nosso medo sem que aprendamos nada que valha a pena. A morte tem sido roubada de nós. E tenho tomado providências para que a minha não seja apartada de mim. A vida é incontrolável e posso morrer de repente. Mas há uma chance razoável de que eu morra numa cama e, nesse caso, tudo o que eu espero da medicina é que amenize a minha dor. Cada um sabe do tamanho de sua tragédia, então esse é apenas 0 meu querer, sem a pretensão de que a minha escolha seja melhor que a dos outros. Mas eu gostaria de estar consciente, sem dor e sem tubos, porque o morrer será minha última experiência vivida. Acharia frustrante perder esse derradeiro conhecimento sobre a existência humana. Minha última chance de ser curiosa.
 
Há uma bela expressão que precisamos resgatar, cujo autor não conseguiu localizar. "A morte não é o contrário da vida. A morte é ao contrário do nascimento. A vida não tem contrários". A vida portanto, inclui a morte. Por que falo da morte aqui nesse texto: Porque a mesma lógica que nos roubou a morte sequestrou a velhice. A velhice nos lembra da proximidade do fim, portanto, acharam por bem eliminá-la. Numa sociedade em que a juventude é não uma fase da vida, mas um valor, envelhecer é perder valor. Os eufemismos são a expressão dessa desvalorização na linguagem. Não, eu não sou velho. Sou idoso. Não eu não moro num asilo. Mas numa casa de repouso. Não eu não estou na velhice. Faço parte da melhor idade. Tenho muito medo dos eufemismos, porque eles soam bem intencionados. São os bonitinhos mas ordinários da língua.
 
O que fazem é arrancar o conteúdo das letras que expressam a nossa vida. Justo quando as pessoas têm mais experiências e mais  o que dizer, a sociedade tenta confiná-las e esvaziá-las também no idioma. Chamar de idoso aquele que viveu mais é arrancar seus dentes na linguagem. Velho é uma palavra com caninos afiados - idoso é uma palavra banquela. Velho é letra forte. Idoso é fisicamente débil, palavra que diz de um corpo, não de um espírito. Idoso fala de uma condição efêmera, velho reivindica memória acumulada. Idoso pode ser apenas "ido", aquele que já foi. Velho é - e está. Alguém vê um Boris Schnaiderman, uma Fernanda Montenegro e até um  Fernando Henrique Cardoso como idosos? Ou um Clint Eastwood? Não. Eles são velhos.
 
Idoso e palavras afins representam a domesticação da velhice pela língua, a domesticação da velhice pela língua., a do mistificação que já se dá no lugar destinado a eles numa sociedade em que, como disse alguém, "nasce-se adolescente e morre-se adolescente", mesmo com 90 anos. Idosos são incômodos porque   usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram  de viver. Basta evocar a literatura para perceber a diferença. Alguém leria um livro chamado "O idoso e o mar"? Não. como o idosos o pescador não lutaria com aquele peixe. Imagine então essa obra prima de Guimarães Rosa, do Conto !Fita Verde no Cabelo", submetida ao terno "idoso". "Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, como velhos e velhas que velhavam.
 
Velho é uma conquista. Idoso é uma rendição. Como em 2012 passei a estar mais perto de 50 anos do  que dos 40, já começo a ouvir sobre mim mesma um outro tipo de bobagem. O tal do "espirito jovem". Envelhecer não é fácil. Longe disso. Ainda estou me acostumando a ser chamada de senhora sem olhar para os lados para descobrir com quem estão falando. Mas existe algo bom em envelhecer, como já disse em uma coluna anterior, é o "espírito velho". Esse é grande. Vem com toda a trajetória e é cumulativo. Sei muito mais do que sabia antes, o que significa que sei muito menos qua achava que sabia aos 20  e aos 30 anos. Sou consciente de que tudo - fama ou fracasso - é efêmero. Me apavoro bem menos. Não embarco em qualquer papinho mole. Me estatelei de cara no chão um número de vezes suficiente para saber que acabo me levantando. Tento conviver bem com as minhas marcas.
 
Conheço cada vez mais meus limites e tenho me batido para aceita-los. Continua doendo bastante, mas consigo aceita-los. Continua doendo bastante, mas consigo lidar melhor com as minhas perdas. Troco com mais frequência o drama pelo humor nos comezinhos do cotidiano. Mantenho as memórias que me importam e jogo os entulhos fora. Torço para que as pessoas que amo envelheçam porque elas ficam menos vaidosas e mais divertidas. E espero que tenha tempo para envelhecer muito mais o meu espirito, porque ainda sofro à toa e tenho umas cracas grudadas à minha alma das quais preciso me livrar porque não me pertencem. Espero chegar aos 80 mais interessante, intensa e engraçada do que sou hoje.
 
Envelhecer o espirito é engrandecê-lo alargá-lo com experiências. Apalpar o tamanho cada vez maior do que não sabemos. Só somos sábios na juventude. Como disse Oscar Wilde, "não sou jovem o suficiente para saber tudo". Na velhice haveremos de ser ignorantes, fascinados pelas dimensões cada vez mais superlativas do que desconhecemos e queremos buscar. É essa a conquista. espirito jovem? Nem, tentem. Acho que devíamos nos rebelar. E não permitir que nos roubem nem a velhice nem a morte, não deixar que nos reduzam a palavras bobas, à cosmética da linguagem. Nem consentir que cal4em o que não chegou, ainda chegará. Pode parecer uma besteira, mas eu cometo minha pequena subversão jamais escrevendo a palavra "idoso," "terceira idade" e afins.
 
Exceto, claro, se for para arrancar seus laços de fita e revelar sua inteligência. Quando chegar a minha hora, por favor, me chamem de velha. Me sentirei honrada com o reconhecimento da minha força. Sei que estou envelhecendo, testemunho essa passagem no meu corpo e, para o futuro, espero contar com um espirito cada vez mais velho para ter a coragem de encerrar minha travessia com a graça de um espanto.
 
Texto de Eliane Brum que escreve às segundas feiras
 
"Aprender a não tentar convencer ninguém. O trabalho de convencer é falta de respeito, é uma tentativa de colonização do outro"  José Seramango
 
Iracema Alves
Jornalista cadeirante
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 
 
 
 
 
 
 
 
   
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


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